1.
A MALDADE EXPLÍCITA
Os
defensores do PL 4.330/04 tentam vender a ideia de que estão fazendo um bem
para os trabalhadores, apresentando a medida, inclusive, como necessária para
ajudá-los, conforme relevado na exposição de motivos do projeto:
O mundo
assistiu, nos últimos 20 anos, a uma verdadeira revolução na organização da
produção. Como conseqüência, observamos também profundas reformulações na
organização do trabalho. Novas formas de contratação foram adotadas para
atender à nova empresa.
Nesse
contexto, a terceirização é uma das técnicas de administração do trabalho
que têm maior crescimento, tendo em vista a necessidade que a empresa moderna
tem de concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade
do produto ou da prestação de serviço.
No Brasil,
a legislação foi verdadeiramente atropelada pela realidade. Ao tentar, de
maneira míope, proteger os trabalhadores simplesmente ignorando a
terceirização, conseguiu apenas deixar mais vulneráveis os brasileiros que
trabalham sob essa modalidade de contratação. – grifou-se
Trata-se,
no entanto, de argumentos carregados de perversidade, sobretudo quando tentam
justificar e minimizar todas as maldades já cometidas pela terceirização, ao
mesmo tempo em que consideram o aprofundamento da maldade como algo bom para as
vítimas. Não significa nem mesmo de uma banalização do mal. Representa, isto
sim, a convicção em torno da legitimidade da perversidade, configurando-se, no
sentido do disfarce, uma afronta à inteligência humana.
De fato, a
terceirização ao longo de 22 (vinte e dois) anos em que se instituiu no cenário
das relações de trabalho no Brasil, desde quando foi incentivada pela Súmula
331, do TST, em 1993, serviu para o aumento vertiginoso da precarização das
condições de trabalho. É impossível ir à Justiça do Trabalho e não se deparar,
nas milhares audiências que ocorrem a cada dia, com ações nas quais
trabalhadores terceirizados buscam direitos de verbas rescisórias, que deixaram
de ser pagas por empresas terceirizadas, que sumiram.
Esses
trabalhadores, além disso, que já passaram, durante o vínculo de emprego, por
um processo de segregação, de discriminação, de fragilização, quando não de
invisibilidade, ainda se veem obrigados a suportar anos de lide processual para
receberem apenas parte de seus direitos.
E o projeto
vem preconizar que terceirização “é técnica moderna de administração do
trabalho”! Mas, de fato, representa uma estratégia de destruição da classe
trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento
da exploração do trabalhador, que se vê reduzido à condição de coisa invisível,
com relação à qual, segundo a trama engendrada, toda perversidade está
perdoada. E, repita-se, essa perversidade vem sendo cometida, concretamente, ao
longo de 22 (vinte e dois) anos, sendo certo, aliás, que esteve presente nos
primórdios da formação do modo de produção industrial, tendo dado origem,
inclusive, ao preceito jurídico da proibição da intermediação de mão-de-obra em
razão do reconhecimento dos problemas gerados aos trabalhadores por tal
sistema.
O próprio
projeto se trai e revela, na incoerência, a sua verdadeira intenção. Diz que a
terceirização advém da “necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se
em seu negócio principal” – grifou-se. Ocorre que o objetivo principal do
projeto é ampliar as possibilidades de terceirização para qualquer tipo de
serviço. Assim, a tal empresa moderna, nos termos do projeto, caso aprovado,
poderá ter apenas trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual
seria, então, o “negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação
direta essa empresa moderna possuiria com o seu “produto”?
E se
concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades, gerando
o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode, de fato,
melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço, então a empresa
contratante não possui uma relevância específica. Não possui nada a oferecer em
termos produtivos ou de execução de serviços, não sendo nada além que uma
instituição cujo objeto é administrar os diversos tipos de exploração do
trabalho. Ou seja, a grande empresa moderna, nos termos do projeto, é meramente
um ente de gestão voltado a organizar as formas de exploração do trabalho,
buscando fazer com que cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”,
que pretende rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui,
ademais, apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que
está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho
subordinado pela necessidade e falta de alternativa.
A realidade
futura que se extrai do PL 4330, caso venha a ser aprovado, é de empresas
constituídas sem empregados, com setores inteiros da linha de produção, da
administração, do transporte e demais atividades geridos por empresas
interpostas cujo capital social é bastante reduzido se comparado com a
contratante, gerando, por certo, uma redução de ganhos, além de um grande feixe
de relações jurídicas e comerciais, que se interligam promiscuamente, mas que
servem para evitar que os diversos trabalhadores, das variadas empresas, se
identifiquem como integrantes de uma classe única e se organizem.
De fato,
ter-se-á a formação de uma espécie de shopping center fabril, onde o
objeto principal de comércio é o próprio ser humano.
Toda essa
engenharia legislativa voltada à ampliação da terceirização se põe,
inegavelmente, a serviço da reprodução do grande capital que, inclusive,
visualizando os benéficos que esse mecanismo lhe proporciona não raro chega,
ele próprio, a constituir empresas de prestação de serviços para execução de
tarefas na suas empresas principais, fazendo-o, por certo, de forma disfarçada.
Na
perspectiva do setor público, que não se encaixa nem perifericamente ao
argumento da justificativa do projeto no aspecto da modernidade do processo
produtivo, a terceirização aparece como mera estratégia de diminuição de custos
para proporcionar ajustes orçamentários. O projeto bem que tenta uma
justificativa jurídica para a terceirização no setor público, com os seguintes
argumentos:
No caso de
contratação com a Administração Pública, o projeto remete à Lei nº 8.666, de 21
de junho de 1993, que “regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública e dá outras providências”.
Isso
significa que a Administração Pública é solidariamente responsável quanto aos
encargos previdenciários, mas não quanto às dívidas trabalhistas. – grifou-se
Esquece-se,
no entanto, de forma proposital, que os serviços referidos do inciso XXI, do
art. 37, da Constituição Federal, não são os serviços atinentes à dinâmica
permanente da Administração, pois para tais serviços, que são executados por
servidores públicos, há o requisito do concurso público, previsto nos incisos I
e II do mesmo artigo, sendo que as únicas exceções se situam no âmbito do
percentual dos cargos de confiança e da execução de tarefas temporárias de
caráter excepcional.
É tão óbvio
que a expressão serviços contida no inciso XXI não pode contrariar a regra
fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o
contrário. Ora, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para
lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta os incisos I e II não
teriam qualquer eficácia, já que ficaria na conveniência do administrador a
escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para a execução do
serviço.
O inciso
XXI, evidentemente, não pode ter tal significação. Tomando o artigo 37 em seu
conjunto, os “serviços”, tratados no inciso XXI, só podem ser entendidos como
algo que ocorra fora da dinâmica permanente da administração.
Não se pode
entender, a partir da leitura do inciso XXI, que o ente público, para
implementar uma atividade que lhe seja própria e permanente, possa contratar
trabalhadores por meio de empresa interposta, até porque, se pudesse, qual
seria o limite para isto?
Se na
expressão “serviços”, a que se refere o inciso XXI, pudessem ser incluídos os
serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente não
haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam,
naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não
declarado da discriminação, retomando, ademais, o caráter escravista que
influenciou a formação da sociedade brasileira. Mas, isto, como se sabe, ou se
deveria saber, fere frontalmente os princípios constitucionais da não
discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.
Vale a pena
perceber que o PL 4.330 não limita as possibilidades de terceirização e a Lei
n. 8.666/93, citada no projeto, também não estabelece um critério para
diferenciar o serviço que pode ou não ser terceirizado. Assim, em breve se verá
o argumento de que a nova lei permitiu uma terceirização mais ampla – e até
irrestrita – também no serviço público. Claro que se pode objetar a essa
previsão com o argumento de que uma ampliação irrestrita da terceirização no
setor público não teria respaldo constitucional. No entanto, a Constituição
também não dá guarida à terceirização nos serviços de limpeza e de vigilância e
mesmo assim ela está aí, sem qualquer enfrentamento de constitucionalidade,
sendo praticada nos próprios entes responsáveis pela aplicação da Constituição…
Concretamente,
na esfera do serviço público, já se pode verificar a perversidade do projeto
com o reforço da ideia de que o ente público não é responsabilizado pelos
direitos trabalhistas dos terceirizados. Ou seja, comete-se uma agressão à
Constituição, que não permite a terceirização no setor público, e tenta-se
levar a situação ao extremo, afastando o ente público da obrigação de garantir
a efetividade dos direitos daqueles que lhe prestam serviços, sob o falso manto
da legalidade, qual seja, o art. 71, da Lei n. 8.666/93, que, em verdade,
sequer teria aplicação no caso. Ora, se a Constituição não traz qualquer regra
prevendo a terceirização no setor público como a lei infraconstitucional pode
regular tal situação fática?
De fato, a
Lei n. 8.666/93, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de
licitação, considera como “Serviço – toda atividade destinada a obter
determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição,
conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação,
manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos
técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo o seu caráter
temporário, conforme previsão do art. 8o. da mesma lei: “A execução das obras e
dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos
atual e final e considerados os prazos de sua execução.” – grifou-se
Mas nada
disso interessa para os defensores da terceirização. O que interessa mesmo é
formalizar um ajuste entre os interesses econômicos e políticos em torno do
comércio de gente. O econômico caracterizado pela a lógica da redução do custo,
o aumento da exploração e a destruição concreta das possibilidades de
resistência por parte da classe trabalhadora. O político pela preservação do
poder, o que é favorecido pelo ato de agradar ao poder econômico, sem
desconsiderar os interesses orçamentários dos entes públicos, que se dá com a
redução do custo da mão-de-obra que a terceirização possibilita e com a manutenção
da eficiência em termos de arrecadação. Veja-se, neste último aspecto, que, nos
termos do projeto, ao contrário do que se passa com os direitos trabalhistas, é
solidária a responsabilidade das empresas tomadoras no que se refere às
contribuições previdenciárias.
É fácil
perceber, portanto, toda a maldade em que se apóia a estrutura valorativa
trazida no PL 4.330.
Aliás, vale
um registro de forma enfática: a terceirização é um mal em si porque
representa, na essência, a mercantilização da condição humana e porque tenta se
justificar, exatamente, pela situação de extrema necessidade e dependência a
que o próprio sistema econômico conduz o trabalhador.
A
terceirização, ainda, visa a dificultar que se atinja a necessária
responsabilidade social do capital. Nesse modelo de produção, a grande empresa
não contrata empregados, contrata contratantes e estes, uma vez contratados, ou
contratam trabalhadores dentro de uma perspectiva temporária, não permitindo
sequer a formação de um vínculo jurídico que possa ter alguma evolução, ou
contratam outros contratantes, instaurando-se uma rede de subcontratações que
provoca, na essência, uma desvinculação física e jurídica entre o capital e o
trabalho, tornando mais difícil a efetivação dos direitos trabalhistas, pois o
empregador aparente, aquele que se apresenta de forma imediata na relação com o
trabalho, é, quase sempre, desprovido de capacidade econômica ou, ao menos,
possui um capital bastante reduzido se comparado com aquele da empresa que o
contratou. Vale lembrar que o capital envolvido no processo produtivo mundial é
controlado, efetivamente, por pouquíssimas corporações, que com a lógica da
terceirização buscam se desvincular do trabalho para não se verem diretamente
ligadas às obrigações sociais, embora digam estar preocupadas com ações que
possam “salvar o mundo”!
Em várias
situações o próprio sócio-empresário da empresa contratada, dependendo do
alcance da rede de subcontratações, não é mais que um empresário aparente, um
pseudo capitalista. Ele não possui de fato capital e sua atividade empresarial
é restrita a dirigir a atividade de trabalhadores em benefício do interesse produtivo
de outra empresa. Na divisão de classes, suplantando as aparências, situa-se no
lado do trabalho. São, de fato, empregados daquela empresa para a qual prestam
serviços, mesmo que seu serviço se restrinja ao de administrar o serviço
alheio.
É interessante
perceber que essa situação da precarização do capital, como efeito da
terceirização e principalmente das subcontratações em rede, foi visualizada
pelos autores do projeto de lei em comento, tanto que tiveram o “cuidado”, na
perspectiva do interesse do grande capital, de prever que não se forma vínculo
de emprego entre o sócio da empresa terceirizada e a empresa contratante,
embora tenham tentado, é verdade, minimizar os problemas daí decorrentes com a
exigência de um capital mínimo para a constituição da empresa terceirizada, o
que, no entanto, como se verá adiante, não constitui garantia eficiente ao
trabalhador e não anula o problema maior do afastamento entre o capital e a
responsabilidade social.
A revelação
mais importante que se extrai do projeto de lei acima mencionado é a de que
o negócio principal de uma empresa é a extração de lucro por
intermédio da exploração do trabalho alheio e quanto mais as formas de
exploração favorecerem ao aumento do lucro melhor, sendo que este aumento se
concretiza, mais facilmente, com redução de salários, precariedade das
condições de trabalho, fragilização do trabalhador, destruição das
possibilidades de resistência e criação de obstáculos para a organização
coletiva dos trabalhadores, buscando, ainda, evitar qualquer tipo de
consciência em torno da exploração que pudesse conduzir a práticas ligadas ao
antagonismo de classe.
Eis,
concretamente, o que significa a terceirização e, por óbvio, os segmentos
irresponsáveis da classe empresarial, sobretudo ligados ao investimento
estrangeiro, que pouco se importam com a vida na realidade social brasileira,
querem que esse modelo se aprofunde ainda mais. Para estes, quanto mais
perversidade melhor, embora queiram enganar a si e a todos, tentando fazer crer
que praticam o bem…
2. A ILUSÃO
A ilusão é
a de que a ordem jurídica constitucional, que foi pautada pela lógica da
prevalência dos Direitos Humanos e da proeminência dos Direitos Sociais,
exatamente para inibir que os interesses puramente econômicos fossem utilizados
como argumentos para reduzir o patamar de civilização historicamente alcançado,
pudesse ser utilizada como fundamento para garantir valores sem qualquer
sentido social, como a “liberdade de contratar” e a “segurança jurídica”.
A liberdade
de contratar, no âmbito trabalhista, só existe dentro do projeto de ampliação
da condição social dos trabalhadores e a segurança jurídica só está garantida
quando os negócios não tentam desvirtuar o propósito constitucional.
A
terceirização, como a experiência demonstra, caminha em direção inversa do
projeto constitucional, sendo certo que a Carta de 88 garantiu aos
trabalhadores, como valor fundamental, a relação de emprego, que é o vínculo
jurídico entre o trabalho e o capital, da qual emergem todos os direitos que
buscam dar efetividade ao princípio da melhoria da condição social.
Não será,
pois, uma lei ordinária, votada por pressão da bancada empresarial, que vai
conseguir fazer letra morta da Constituição ou mesmo impedir que juízes
trabalhistas cumpram o seu dever funcional de negar vigência a qualquer lei que
fira a Constituição e impeçam a eficácia dos Direitos Humanos e dos Direitos
Fundamentais Sociais.
Em suma, se
os segmentos empresariais querem segurança jurídica que passem, então, a
respeitar a Constituição e não queiram alavancar seus empreendimentos por meio
da supressão de direitos trabalhistas, pois, do contrário, serão envolvidos em
uma autêntica ilusão jurídica, ainda mais quando tenham como fundamento apenas
um dispositivo legal encomendado.
Além disso,
é ilusório também acreditar que os trabalhadores, que são os autênticos
protagonistas da história, assistam a toda supressão de seus direitos de modo
inerte e sem lutas.
Nesse
contexto, a situação que envolve a votação do PL 4.330/04 é preocupante para os
trabalhadores, mas não é, de modo algum, o fim da história, podendo-se
constituir, caso seja aprovado, bem ao contrário do que se poderia imaginar, um
grande complicador para os segmentos empresariais que desprezam sua
responsabilidade social e o projeto constitucional.
São Paulo,
05 de abril de 2015.
Fonte:
http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/06/pl-4-33094-maldade-explicita-e-ilusao/